Na Ponte... A Passagem...
Os primeiros raios do astro rei começavam a tingir o manto escuro de laranjas e rosas. O dia adivinhava-se quente e soalheiro. E eu encontrava-me ali. Prostrado naquela ponte. Sentado no pavimento, meus pés balouçavam no vazio. A hora era madrugadora e os poucos carros que passavam nem reparavam na minha figura. Não evitei estabelecer uma parábola com a minha própria existência. Na realidade durante o meu percurso de vida, as raras pessoas que se cruzavam comigo, pouco ou nada me ligavam. Até os animais de estimação que por vezes tinha, mais à força de ofertas da minha mãe do que por minha iniciativa, morriam passado pouco tempo. Do cágado ao periquito, do cão ao peixinho dourado.
Uma pessoa houve que me acompanhou durante um largo período. Mas ela teve o bom senso de terminar o nosso relacionamento, na precisa altura em que há 3 meses não recebia salário. Porra! Mesmo na véspera de ser despedido é que aquela gaja acaba comigo! Que coincidência. Mesmo quando precisava de mais apoio. Aquele apoio que nos últimos meses, já não existia. Lá no trabalho, quando confrontei os patrões com o meu despedimento, deram-me a razão de contenção com as despesas. Numa época em que as fábricas começavam todas a fechar, para se recolocarem em países que permitam uma maior competitividade. Países em que a mão-de-obra é mais barata e o trabalho infantil além de legal é incentivado, por sociedades e governos para os quais direito das crianças nada significa. Nada mais podia esperar. Em breve, outros colegas iriam seguir o meu caminho. Depois a fábrica cessou a produção. Por fim, encerraria os portões.
E eu ali, sem saber muito bem o que fazer da minha vil existência. Pensei por momentos nos camaradas de labuta que estariam a passar o mesmo que eu. Desejei fortemente que fosse o único naquela situação, mas quando olhei para o lado, lá estava o chefe de turno. E mais à frente o supervisor. E mais à frente alguém da linha de montagem. E mais à frente... mais à frente... à frente... Consecutivamente. Senti-me impotente perante aquele cenário. Por momentos entreolhámo-nos, na tentativa de algo encontrar sem ser o vazio, a ausência de esperança. Quando falta um rumo à vida, que fazer? Saltei sem pensar duas vezes, tal como todos os outros que naquela madrugada partilhavam o tabuleiro da ponte.
Já a manhã ia a meio, quando os bombeiros e polícias acabavam os trabalhos de remoção dos cadáveres da via pública. As ruas eram limpas do sangue à mangueirada. O mesmo sangue trabalhador que tinha incentivado aquele inóspito lugar. Alguém entre assistência daquele macabro episódio perguntou “Porquê?”. Ninguém respondeu. Apenas se ouvia a pressão da mangueira e os murmúrios constantes das viúvas e órfãos. Lá do alto, acompanhado pelos outros suicidas, eu sorria. Por uma vez na vida não estava só...
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